Democratização inacabada: O fracasso da segurança publica

Fichamento

Por que o processo de democratização, iniciado em 1978, foi acompanhado por taxas crescentes de criminalidade, mais especialmente de homicidios entre homens jovens?

As taxas médias de homicídio entre homens jovens de 15 a 29 anos aumentaram assim em todo o país nos no 1980  e 1990. No ano 2000, 93% dos casos eram de homens jovens mortos e apenas 3%de mulheres jovens nessa faixa de idade. Por quê? 


1) Explicações Macrossociais e crime organizado transnacional

Abordo, em primeiro lugar, a importância e os limites das explicações macrossociais sobre a criminalidade violenta, como a pobreza e a exclusão social, quando vista nas suas interações com os mecanismos transnacionais do crime organizado em torno do tráfico de drogas e de armas de fogo que desenvolveu uma interação perversa com a pobreza e a juventude vulnerável de muitos países:

 
O crime organizado transnacional aumentou em muito a violência em
alguns setores, especialmente o do tráfico de drogas. Os que ocupam posições
estratégicas nas grandes redes de conexões transnacionais podem ter rápidos
ganhos em razão de uma combinação de poucos limites institucionais, violência
e corrupção. Mundialmente, eles fomentam práticas subterrâneas e violentas de
resolução de conflitos: as ameaças, a intimidação, a chantagem, a extorsão, as
agressões, os assassinatos e, em alguns países, até mesmo o terrorismo

Em outras palavras, se bem que a Polícia Federal tenha examinado o crime organizado nos últimos anos, a polícia dos Estados da República Federativa do Brasil, suas polícias civis e militares, intervém principalmente na repressão violenta das favelas e dos bairros pobres nas regiões metropolitanas e capitais. Conseqüentemente, houve um crescimento das forças de segurança privadas formais e informais, incapazes de diminuir a consciência do risco e da insegurança entre os moradores das cidades...

Deve-se discutir, na perspectiva da complexidade, como a pobreza e a falta
de emprego para os jovens pobres se relacionam com os mecanismos e fluxos
institucionais do sistema de Justiça na sua ineficácia no combate ao crime orga-
nizado. Esse atravessa todas as classes sociais e está conectado aos negócios legais
e aos governos.

2) Inercia institucional: raizes historicas do sistema de justiça ineficaz

Em segundo lugar, focalizo a inércia institucional que explica as violações persistentes dos direitos civis, bem como a ineficácia do sistema de justiça que tem raízes históricas profundas e se articula com o campo político. 


Sem dúvida, há conexões entre a presente violência urbana e o passado de
violência predominante rural no Brasil. Mas será possível explicar a onda atual de
violência como um simples efeito das camadas geológicas da violência costumei-
ra no Brasil rural? Como em todo país, há aqui uma história de longa duração
de violência institucional e, no caso brasileiro, sobretudo violência privada. Mas
não de violência política, como em outros países que viveram guerras civis entre
partidos políticos, grupos étnicos, raciais ou religiosos.
 


Assim, o Brasil não tem nem traumatismos indeléveis nem ódios profun-
dos em conseqüência das guerras civis envolvendo grupos étnicos, religiosos ou
políticos, tampouco as glórias e sofrimentos de revoluções.
 É essa violência privada e a desigualdade social, econômica e jurídica
que foram as marcas mais importantes da sociedade brasileira de então, mas que
persistem, transformadas, até hoje.

Não há dúvida de que o poderio pessoal e a violência privada eram os pri-
vilégios dos senhores de engenho e outros grandes proprietários rurais.

Nessas localidades onde imperavam chefes locais, os juízes então não tinham autonomia e as suas decisões usualmente beneficiavam os poderosos, cujos crimes ficaram impunes. Não se pode dizer que os tribunais estavam acima do poder privado local, exceto no Rio de Janeiro, a capital, onde os tribunais superiores adquiriam a independência necessária. Conseqüentemente, a impunidade tem uma longa história no Brasil. Os policiais também foram formados para satisfazer os proprietários de terra e a eles submeterem-se, reprimindo somente os pobres, os negros e os indígenas.

A cultura da negociação, desenvolvendo-se ao longo dos séculos XIX e XX, e a da tolerância deixam também traços na história do Brasil. Essa pode ser a razão pela qual as artes da negociação e da conversação se disseminaram na população brasileira, especialmente nas áreas urbanas de alguns Estados do Brasil.

Após a deterioração do poder pessoal do coronel, uma nova clientela se
impôs: a organizada pelos partidos políticos usando os benefícios obtidos junto
ao governo, ou seja, com o dinheiro dos impostos. Mas o sistema tornou-se mais
instável para os políticos e menos legitimado pelos clientes que passaram a consi-
derar os primeiros como falsos patrões e amigos (Zaluar, 1985). Mesmo assim, o
sistema clientelista persistiu como uma manipulação autoritária a fim de ganhar
os votos dos eleitores, freando o verdadeiro compromisso com suas demandas.
A mesma manipulação se encontra no Congresso como meio de obter a maioria
do plenário para aprovar as ações do governo. Esse modo de negociar os votos
dos parlamentares abriu o caminho à corrupção a que assistimos até hoje.

 Se bem que tenha havido retrocessos, é inegável que nossa tradição parlamentar liberal,
 estabelecida pela força que sempre tiveram as oligarquias de várias regiões do país,
mostrou-se mais forte do que esperavam os adeptos do autoritarismo e do regime
militar entre 1964  e 1984. O Congresso Nacional só foi fechado rapidamente.
Entretanto, os políticos que corroboravam as decisões dos militares foram ma-
nipulados no jogo das concessões e de contratos privilegiados para as empresas
e governos estaduais ou municipais indicados pelos parlamentares em causa. O
governo continuou a usar a corrupção adicionada ao clientelismo como estraté-
gia para controlá-los.

A democratização, que começou no fim dos anos 1970, não modificou o
jogo entre o Executivo e o Legislativo. A abertura do regime foi reduzida aos
direitos políticos e ao sistema eleitoral: o voto direto para a eleição do presiden-
te. Mas a democratização não recuperou a cultura urbana de tolerância e as artes
da negociação. Pode-se dizer, então, que o pior efeito de um regime de exceção
é que ele destrói a cultura democrática que se manifesta nas práticas sociais quo-
tidianas de respeito e de civilidade com o outro, deveres do cidadão, até mesmo
as da negociação que havia se difundido em cidades brasileiras.


Por ter empregado a tortura, as prisões ilegais e a censura, o regime militar
abriu o caminho para a disseminação do crime organizado em vários setores.
Alguns oficiais, que haviam aderido a essas práticas subterrâneas, tornaram-se
membros de grupos de extermínio ou de extorsão. Ou ainda se associaram aos
“bicheiros”, os proprietários dos pontos ilegais para apostar no jogo do bicho,
assim como aos traficantes de drogas (Gaspari, 2002). Foi durante o regime mi-
litar que os bicheiros passaram a participar e controlar as escolas de samba e seu
desfile, transformando-as em empresas lucrativas. 

Mais ainda, os militares que se envolveram com o crime organizado do
jogo proibido e do tráfico foram protegidos pela “Lei de Segurança Nacional”,
que só foi suprimida em  1988, assim como pela “Lei de Anistia”, de 1979.
Como a lei proibiu processos de acusação, esses personagens que espalharam as
práticas do crime organizado permaneceram impunes. É bom não esquecer que
essa forma de conciliação, imposta pelos militares envolvidos, foi direcionada a
reprimir a memória de quaisquer atos ilegais, sem um debate público sobre o
perdão e a reconciliação conscientes e aceitos pelos cidadãos brasileiros.
O resultado foi que tampouco se discutiram as conseqüências da milita-
rização das polícias durante o regime militar nem as formas de ação superadas
para um mundo criminal governado por organizações transnacionais ligadas aos
negócios legais. Visto que houve poucas reformas no sistema de Justiça e, prin-
cipalmente, quase nenhuma mudança nas práticas policiais no que diz respeito
aos pobres, pode-se dizer que os efeitos do regime militar ainda estão presentes
no funcionamento dessas instituições que não respeitam os direitos civis dos
cidadãos

A economia brasileira tornou-se diversificada e moderna, sem que a demo-
cratização de suas instituições políticas e jurídicas acompanhasse essa moderniza-
ção. Assim, mesmo os seus setores mais dinâmicos praticam ilegalidades como o
“caixa dois” das empresas, uma maneira de evitar o pagamento dos impostos. É
essa a fonte para pagar as eleições dos candidatos que irão conceder às empresas
envolvidas privilégios e contratos governamentais sem licitação, obrigatória pela
lei administrativa brasileira. O país é agora uma democracia eleitoral. Porém, as
eleições são muito caras e os candidatos recebem contribuições, nem sempre
admitidas publicamente, de muitas fontes, incluindo as dos negócios ilegais.

Apesar de o Judiciário ser hoje um poder independente (demasiadamente
 independente, alguns acham), o chefe do Executivo
designa os membros do Conselho Fiscal, os que vigiarão e apurarão suas des-
pesas públicas. O governador indica igualmente alguns ministros de tribunais
superiores, assim como os chefes de departamentos da Polícia Civil e os coman-
dantes dos batalhões da Polícia Militar. Todos esses cargos constituem fontes fá-
ceis de corrupção, visto que ninguém que os ocupe terá a autonomia necessária
para combater eficazmente as violações da lei.

Justamente com a abertura do regime, teve início um crescimento sur-
preendente dos crimes violentos, sobretudo de seqüestros, roubos e homicídios
que utilizam armas de fogo. Tais crimes cresceram muito rapidamente nas ca-
pitais e regiões metropolitanas, além de algumas cidades do interior de certos
Estados brasileiros, tais como Pernambuco, Espírito Santo, São Paulo, Rio de
Janeiro e Paraná. Nos Estados Unidos, esse fenômeno começou durante os anos
1960, quinze anos antes.

Em terceiro, mas nem por isso menos importante, trata-se do olhar necessário aos processos microssociais dos homens jovens no tráfico de drogas. É necessário compreender as formações subjetivas sobre o valor e o respeito de um homem, isto é, a concepção de masculinidade em suas relações com a exibição de força e a posse de armas de fogo

Assim se formam as práticas de violência policial contra os pobres em geral e as práticas sociais de violência dos jovens pobres entre si numa sociedade fragilmente governada pela lei e em um Estado que nunca teve o monopólio legítimo da violência. Sempre houve, no Brasil, um hiato entre os direitos formais, escritos na lei, e os realmente praticados. Desse modo, devem-se focalizar não apenas a letra da lei, mas principalmente os processos sociais, tais como as regras ou as práticas implícitas das ações dos atores.



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